Prefácio do livro Homens e Caranguejos, por Josué de Castro. Via: @fractal
“Procuro mostrar neste livro de ficção que não foi na Sorbonne nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome. O fenômeno se revelou espontaneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife: Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta é que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo. Seres anfíbios - habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo: este leite de lama. Seres humanos que se faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a andar com os caranguejos da lama e que depois de terem bebido na infância este leite de lama, de se terem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues e de se terem impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nunca mais se podiam libertar desta crosta de lama que os tornava tão parecidos com os caranguejos, seus irmãos, com as suas duras carapaças também enlambuzadas de lama.
Cedo me dei conta deste estranho mimetismo: os homens se assemelhando, em tudo, aos caranguejos, arrastando-se, agachando-se como os caranguejos para poderem sobreviver. Parados como os caranguejos na beira d’água ou caminhando para trás como caminham os caranguejos.
É por isso que os habitantes dos mangues, depois de terem um aia saltado para dentro da vida, nesta lama pegajosa dos mangues, dificilmente conseguiram sair do ciclo do caranguejo, a não ser saltando para a morte e, assim, se afundando para sempre dentro da lama.
A impressão que eu tinha, era que os habitantes dos mangues - homens e caranguejos nascidos à beira do rio - a medida que iam crescendo, iam cada vez se atolando mais na lama. Parecia que a vegetação densa dos mangues, com seus troncos retorcidos, com o emaranhado de seus galhos rugosos e com a densa rede de suas raízes perfurantes os tinha agarrado definitivamente como um polvo, enfiando tentáculos invisíveis por dentro de sua carne, por todos os buracos de sua pele: pelos olhos, pela boca, pelos ouvidos. E assim ficavam todos eles, afogados no mangue, agarrados pelas ventosas com as quais os mangues insaciáveis lhe sugavam todo o suco da sua carne e da sua alma de escravos. Com uma força estranha, os mangues iam, assim, se apoderando da vida de toda aquela gente numa posse lenta, tenaz, definitiva. Estas estranhas plantas que, em eras geológicas passadas, se tinham apoderado de toda essa área de terra - esta fossa pantanosa onde hoje assenta a cidade do Recife - estendia agora sua posse também aos seus habitantes. E tudo nesta região passava a pertencer ao mangue conquistador e dominador: tanto a terra como o homem.”